sábado, 9 de março de 2019

O ou a instrumentista


Em frente ao escritório tem 40 janelas perfiladas, correspondem a 20 apartamentos, são aproximadamente 80 vizinhos. Suas vidas me chegam através dos entremeios de janelas e cortinas. Não posso conter aquilo que chega até mim, em alguns casos sei até sem querer em outros até gosto das pequenas rotinas. Escapes de vida que me chegam sem nunca se mostrar totalmente.  Tantas pessoas e insisto em me sentir só.
Essa semana estava olhando pela janela e comecei a ouvir um som de violino. Durante dois dias seguidos, minha vizinha ou vizinho, me presenteia com música. É um som delicado, tenho me esforçado para identificar a janela, em qual das 40 habita o ou a instrumentista? Será que está começando a aprender agora? Quais músicas ouve? Por que toca somente à noite?
Nunca vejo seu rosto  por mais que me pendure na janela. Como posso perder uma única pessoa em meio a 40 janelas?
Sou sua ouvinte secreta, serei a única? É provável que toque em seu quarto, talvez você pense que ninguém pode te ouvir, talvez deseje quem ouça. Tocar deve ser como escrever, um misto paradoxal entre fazer, desejar e mostrar. Talvez mostrar seja para fazer as coisas existirem no outro, mas depois somos soterrados pela vergonha e escondemos porque parece bobo e sem sentido.  Mas tocar é mais sublime, de certo modo deve ter sido a primeira forma de expressão humana tendo nosso como instrumento. Umas palmas, uns assobios, uns pés no chão e vozes já produzem sons incríveis. Quem toca deve ficar um pouco mais perto do sagrado.
Eu não sei nada sobre você, mas de certo modo tenho compartilhado um momento tão privado. Não posso evitar, música é transportada pelo vento. Se eu soubesse tocar poderia responder, então chegaria na janela com meu saxofone, um blues triste ia soar. Aí você ouviria, provavelmente sairia à janela e envergonhados sorriríamos. No dia seguinte nos esbarraríamos na portaria, um silêncio constrangedor se abateria sobre nós até um dos dois dizer – Nossa como você toca bem! Talvez com o seguir dos dias até atravessaríamos a garagem, visitas seriam frequentes.
Cordas e sopro fazem uma boa dupla?
Mas eu não toco, minhas habilidades musicais são muito reduzidas. Me ocorreu que não saber um instrumento me impediu de fazer amizade.  Será que você se moveria por uma caixinha de música?

sexta-feira, 1 de março de 2019

O reflexo

Em que espelho ficou perdida a minha face? Retrato - Cecília Meireles

Virgínia abre os olhos, oscila entre o desejo de dormir algumas horas e a necessidade de levantar. Mas não há tempo, o dia será cheio de reuniões, lentamente se levanta e espreguiça o corpo, lutando contra o sono. Segui para o banheiro, alivia a vontade de fazer xixi, abre a torneira e a água cai por sobre sua pele. Começar o dia sem o banho era impensável para ela, era seu pequeno ritual, lavar os cabelos, sentir o perfume do sabonete, o barulho da água, aquele breve momento feito de puro instante.

Ao sair do banheiro envolta no robe, já devidamente acordada, exalando um cheiro suave dos produtos que passaram pela sua pele. Caminha até a cozinha para preparar o café. Enquanto a água ferve, checa alguns e-mails, o café da manhã é a largada para o dia, costuma alternar as preparações dos alimentos com o adiantamento de pequenas tarefas. Quando tudo fica pronto se senta na mesa para comer, Virgínia confere a agenda do dia, seriam três reuniões importantes para definir as estratégias de defesa.

A última etapa da manhã consiste em escolher a roupa, em anos de profissão havia aprendido o impacto da vestimenta no fechamento de contratos. Desliza suas mãos de unhas bem cuidadas por entre suas roupas. Escolhe uma saia de corte justo ao corpo, uma blusinha e um blazer.

Ela vai para frente do espelho e se posiciona como de costume para se vestir, gostava de ver a roupa em seu corpo. Vestir de fato uma roupa de fato exige aprender a atitude certa, era através do espelho que as desenvolvia. Então quando olha para o espelho para ver como estava, simplesmente não se enxerga. Virgínia sente o corpo desfalecer, um giro de torpor, será que havia ficado cega? Ela sai para a sala onde havia luz suficiente, mas podia ver suas mãos, a casa, seus quadros tudo, enxergava também se posicionasse seus olhos os contornos de seu rosto.

Virgínia sente uma onda invadindo seu corpo, tenta respirar profundamente, havia lido que respirar assim acalmava em momentos de ansiedade. Ela vai ao banheiro e se posiciona em frente ao espelho, fecha os olhos desejando firmemente que tudo tenha acabado. Ao abrir novamente não consegue ver seu reflexo, havia sumido, mas como se seu corpo ainda estava ali?

E se tentasse tirar uma selfie? Sim aí poderia se ver, corre para o celular, configura e ao fazer a foto, vira a tela e novamente cadê seu rosto?

Apalpa seu corpo, estava tudo lá, olha a casa e consegue enxergar perfeitamente. Estaria em surto? Mas a agenda, os compromissos do dia, tudo demonstrando sua sanidade mental. Como poderia ter perdido seu reflexo?

Ainda uma vez toca seu corpo para confirmar sua existência. Decide ir para o trabalho, fez as três reuniões, quem a via nem imaginava a perturbação em que se encontrava. Durante algumas vezes ao ir sozinha no banheiro, e se olhar no espelho, Virgínia chorava por ter perdido seu reflexo.

Uma coletânea

O Desacanhamento poético virou um pequeno ebook... tentei organizar a produção ao longo desses dez anos! É algo pequeno, mas uma forma de ...