quinta-feira, 18 de abril de 2019

Van Gogh, pegou nas minhas mãos


Alguns dias atrás fui em uma livraria, mexi aleatoriamente em alguns livros. Acho bom imaginar que são os livros me encontram, como se dissessem: vem aqui eu tenho algo para contar. Sendo assim, foi Van Gogh que pegou nas minhas mãos. O livro traz as cartas destinadas ao seu irmão Théo, passei os olhos nas primeiras linhas e como um desenho Vicent tomou forma em mim.
Sai de mãos dadas com Vicent Van Gogh. Todos os dias temos encontros marcados, não tenho pressa e por isso percorro devagar cada carta. Não são cartas para serem lidas com atropelos, é necessário ir criando paciência, aprender a olhar pelos olhos de Van Gogh (1853-1891).
Como todo encontro, tudo começa pela apresentação. Algumas páginas nos contam os aspectos gerais desse pintor, onde nasceu, quem eram seus pais e irmãos, a amizade com o irmão mais novo Theodore o “Théo”, as paixões amorosas e as desilusões. Conhecemos Van Gogh aos dezesseis anos, cujo primeiro trabalho foi na Casa Groupil (1869), galeria de arte, era um empregado modelo. Quatro anos mais tarde ao encontrar o irmão Théo, o percebe como um jovem de quinze anos e ao mesmo tempo maduro, foi depois dessa visita que iniciaram a troca de correspondência interrupta.
A vida do jovem Van Gogh poderia ter sido tranquila, mas ele se apaixona aos 21 anos por Úrsula, filha da dona da pensão onde morava, que não aceitou o pedido de casamento. Esse acontecimento desencadeou uma profunda mudança no jovem, ele passou a questionar o sentido da vida. A crise afetou seu desempenho profissional e por isso foi despedido.
Uma ideia começou a se formar em sua cabeça, ser pintor. Seria loucura? E as contas? Um dilema ainda hoje tão atual, seguir a vocação ou pagar as contas? O jovem Van Gogh compreendendo as dificuldades de se educar na arte optou, por ser pastor, em diversas cartas podemos ver o olhar religioso de Van Gogh.
E quando não nos adaptamos às escolhas que fazemos? Seja em 1877 ou 2019, essa é outra questão atual, às vezes tentamos com toda a energia fazer dar certo, entretanto, nem sempre o êxito é possível.  Van Gogh tentou de 1877 a 1878, fazer dar certo, mas não se adaptou à Universidade. Resolveu então ser missionário entre os pobres mineiros de Borinage, em sua carta datada de 15 de novembro de 1878, é possível ver o quanto a vida desses operários toca profundamente Van Gogh e ele contou ao seu irmão sobre uma reunião, em que comentou um texto bíblico:
E foi com atenção que me escutaram, quando eu tentei descrever o aspecto desse macedônio sedento pelo consolo do Evangelho e pelo conhecimento do único Deus verdadeiro. E sobre como deveríamos imaginá-lo como sendo um operário com feições de dor, de sofrimento e de fadiga, sem nenhuma aparência de beleza, mas com uma alma imortal ávida de alimento que não perece, especialmente a palavra de Deus. E sobre como Jesus Cristo, é o mestre, que pode fortalecer, consolar e aliviar um operário que tem a vida dura, porque ele próprio é o grande homem de dor, que conhece suas enfermidades, que foi chamado ele próprio de carpinteiro, embora fosse o filho de Deus, que trabalhou trinta anos numa humilde oficina de carpintaria para cumprir a vontade de Deus, e Deus quer que, imitando Cristo, o homem leve uma vida humilde sobre a Terra, não aspirando coisas elevadas, mas dobrando-se à humildade, aprendendo no Evangelho a ser doce e humilde de coração.
 E novamente mesmo com todo empenho, não conseguiu empreender sua missão. Ele estava sem trabalho, sem dinheiro e já não podia voltar para sua casa. Sua subsistência vinha de seu irmão Théo. Nesse ponto, Van Gogh, me dá sua mão, eu me sinto perdida junto com ele. Você pode ter todas as palavras e guias de autoajuda, não há nada que te prepare para um momento de fracasso e de se sentir absolutamente sem direção em sua vida. Você pode imaginar, tudo pelo qual você dedicou energia dar errado?
Se recordam daquele germe de ideia, ser pintor. Na verdade, as cartas de Van Gogh demonstram que esse desejo profundo esteve sempre ali, é uma pena que a edição da L&PM Pocket não seja colorida, em algumas cartas ele enviou esboços que são incríveis[1]. Ele retomou sua vocação e em julho de 1880 escreveu ao seu irmão uma das cartas mais tocantes, na qual relata suas angústias e a dificuldade de reconquistar a confiança de sua família:
E por isto que antes de mais nada, sou levado a crer, seja vantajoso, e mais razoável, que eu vá embora e me mantenha a uma distância conveniente, que eu faça como se não existisse.
O que para os pássaros é a muda, a época em que trocam de plumagem a adversidade ou infortúnio, os tempos difíceis, são para nós, seres humanos. Podemos permanecer neste tempo de muda, também podemos deixa-lo como que renovados, mas de qualquer forma isto não se faz em público, é pouco divertido, e por isto convém eclipsar-se. Pois seja.
Agora, por mais que reconquistar a confiança de toda uma família, talvez não totalmente desprovida de preconceitos e outras qualidades igualmente honoráveis e elegantes, seja de uma dificuldade mais ou menos desesperadora, eu ainda tenho algumas esperanças de que pouco a pouco, lenta e seguramente, a cordial compreensão seja restabelecida com uns e outros.
                Ao analisar suas condições de vida, futuro e estado financeiro concluiu que lhe faltava mais do que tinha. Aos olhos de sua família suas quedas significavam não fazer nada. Ele se propôs ser pintor e estudar, mesmo que longe do espaço formal das universidades e assim explicou ao seu irmão:
Talvez você diga: mas por que você não continuou como gostaríamos que continuasse, pelo caminho da universidade? Não responderei mais do que isso: é muito caro; e ademais este futuro não seria melhor do que o de agora, no caminho em que estou.
Mas no caminho em que estou devo continuar – se eu não fizer nada, se não estudar, se não procurar mais, então estarei perdido. Então, ai de mim.
Eis como eu vejo a coisa: continuar, continuar, isso é que é necessário.
Mas qual é o seu objetivo definitivo?, você me perguntara. Este objetivo torna-se mais definido, desenhar-se-á lenta e seguramente como o croqui que se torna esboço e o esboço que se torna quadro, à medida que se trabalhe mais e seriamente, que se aprofunde mais a ideia, no início vaga, o primeiro pensamento fugidio e passageiros, a menos que o fixemos.
Van Gogh, me dá de novo suas mãos.  Ficamos aqui de mãos dadas.
Como disse, essas cartas são para serem lidas devagar, às vezes, é preciso consultar uma cidade, olhar o nome de um pintor no Glossário de Nomes Próprios, pode dar vontade de pesquisar algumas imagens, pode ser também que você volte na introdução para contextualizar a data de alguma correspondência com o período da vida de Vicent. Dê tempo, exercite a paciência.
Dessa carta em diante o que se seguiu foi um comprometimento absoluto com o aprendizado da pintura. Ele diz: “O desenho é uma luta dura e diária”.  É sobre o desenho essa constatação, mas é válida para qualquer aprendizado.
Tive vontade de ver as respostas de Théo, só o vejo através dos olhos de Vicent. Essa também é a história de dois irmãos ligados profundamente, se abrir por meio da palavra de maneira tão sincera, não é possível em uma relação superficial. Essa relação de amizade nos deixou como legado a obra artística de Van Gogh, assim relembramos que sem apoio e confiança de alguém é impossível seguir adiante.
Ainda caminhamos de mãos dadas Vicent e eu. Ainda há coisas que preciso ouvir.


[1] Nesse site você pode olhar a correspondência entre os irmãos e ainda ver as cores dos desenhos de Van Gogh. Recomendo marcar as cartas e depois consultar no site.
Disponível em: <http://vangoghletters.org/vg/with_sketches.html>. Acesso em: 18 abr. 2019.

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